sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Bagagens: Timor-Leste


 {Vista panorâmica de Díli a partir de Dare}

Sempre a primeira lembrança são os meninos vendendo animais de madeira e créditos para celular na frente do hotel (agora, pela primeira vez, me vem à cabeça que eu nunca vi uma menina pequena nas ruas de Díli).
A qualquer sinal de movimento da porta ...em direção à varanda, surge uma profusão de garotos falando “pulsa! pulsa!” ou “crocodilo!”, com um D encostando a ponta da língua nos dentes de cima que uma carioca acostumada a pronunciar a letra com “dgi” tem dificuldade de reproduzir. Eles sabem da vida de todo mundo e não precisam de nada para contar alguma notícia sobre a pessoa com quem viram você conversar no dia anterior.

- Carlos vai para Portugal.
- E eu com isso, garoto!?

De dia, eles são muitos. É bem verdade que eu me aproveito da dificuldade que eles têm de formular frases em português. Só dou bom dia e digo que não vou comprar nada. Enquanto eles tentam formular uma nova proposição, saio pela rua de fininho, evitando que eles me sigam mais uma vez pelos próximos dois quarteirões. Quando seguem, é para na metade do caminho falarem “brasileeeira...”, numa cadência que para mim soa como vinda da Bahia. Riem (e eu também) e voltam para a frente do hotel.

De noite, eles são poucos. Um em especial está sempre lá. Quando sento na varanda para esperar alguém, ele se aproxima e pergunta “pulsa?”, agradeço e digo que não preciso de créditos de celular. Ele já sabe há várias noites a minha resposta. Pára, pensa um tempo e fala “brasileeeira...”. Nós dois sorrimos (já virou um ritual diário). Ele encosta-se à pilastra tentando criar mais uma fala para continuar o diálogo. Eu vejo quase fumacinha saindo da cabeça dele. Tento imaginar se ele está pensando em tétum ou em bahasa. Depois de um tempo sem conseguir uma boa frase ou uma boa tradução para uma língua que eu conheça, sorri e vai embora. Lembro dos livros do Mia Couto quando, no diálogo entre um negro e um branco, o primeiro diz ao outro “a diferença é que eu sei ler o seu mundo e você não sabe ler o meu”. Há duas diferenças fundamentais entre o menino e eu. A primeira é que ele sabe ler o meu mundo, mas eu não sei ler o dele. A segunda é que eu sei que ele sabe ler o meu mundo, embora eu não saiba ler o dele. Mas ele ainda não sabe disso.

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(sobre a vida, o universo e tudo mais):

  1. Que bom te ler e saber que agora, todas as terças e sextas-feiras, as águas dos rios da sua aldeia vão rolar com sua gostosa prosa.

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  2. E viva o primeiro passo, entre lá e cá. Poder ouvir no balanço das palavras estes sons, estes risos.

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  3. É extraordinária essa capacidade de captação do exterior e interior humano.
    tem certeza que não adquiriu nenhum destes bichinhos de madeira? Sou fissurada
    neles !!!

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  4. Oi Gabriela,
    Finalmente estou me atualizando em seu blog. Adoro suas histórias sobre o Timor-Leste. Já vi que tem mais posts sobre isso. Devagarzinho eu leio todos. Beijos!

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