terça-feira, 18 de março de 2014

Abolindo a recomendação "leia os clássicos"


{Moça interage com estátua da Cow Parade na praia de Copacabana, em 2007} 
 
Não me entenda mal, não há nada de errado em ler os “clássicos”. O que me incomoda é a suposta obrigatoriedade de se começar a incursão pela literatura por um caminho pré-definido.
É difícil não relacionar esse tipo de discurso à grande resistência de muitas pessoas – e principalmente jovens – ao hábito da leitura. Parto do princípio que livros encantam quando conseguem dizer ao leitor algo sobre ele próprio, mesmo que seja pelo avesso. Histórias infantis costumam fazer isso através de construções de universos mágicos, em grande parte com personagens que sequer são humanos. Assim, permitem que a criança percorra a história sem que sinta que aquilo pertence a outro indivíduo específico e, por isso, que não pode ser adaptado às suas próprias referências de vida. Com o passar do tempo, adquirimos (ou deveríamos adquirir) a capacidade de nos colocar no lugar do outro com mais facilidade. Mas isso não quer dizer que seja um exercício totalmente fácil, ainda mais na adolescência, em que qualquer sinal de diferença costuma ser encarado com apreensão e desprezo. Pois é justamente nessa época que, tendo o jovem passado pelo primeiro descobrimento da literatura infantil ou não, são colocadas diante dos seus olhos histórias humanas passadas em contextos de séculos anteriores. Pode ser só impressão minha, mas a chance de essa tática não dar certo é enorme.
 
As aulas de literatura tem um conteúdo programático. É preciso que, dentro da formação de um indivíduo, ele ou ela conheça correntes literárias e, para isso, é natural que se estabeleça contato com as obras mais famosas de cada um dos períodos. O problema está, ao meu ver, no fato de não apresentar às pessoas ainda jovens a opção da literatura por prazer, com um universo de escolhas muito mais amplo do que aquele dos “clássicos”. Se esses forem escolhidos para a leitura num momento de lazer, fantástico! Mas não podem ser os únicos títulos disponíveis ou recomendados.
 
A recomendação repetitiva “leia os clássicos” é limitante não apenas por desestimular ou desmerecer a busca por textos mais contemporâneos. Grande parte do problema está na própria definição do que são “clássicos” da literatura. Para começar, não há consenso sobre o que torna um livro clássico. De forma geral, é um rótulo que pretende reunir títulos que sobrevivem ao passar do tempo. Ou seja, livros normalmente escritos num passado não tão próximo. O problema é que isso significa em última instância que leremos livros do que eram considerados no passado fontes de erudição: dito em bom português, livros escritos por homens no norte global (na esmagadora maioria das vezes, da Europa e dos Estados Unidos, e, preferencialmente, em língua inglesa). Há exceções? Sim, há exceções como a meia dúzia de livros escritos por (homens) asiáticos e que voltaram à moda por serem pseudo-adaptados para o mundo dos negócios. Agora, pensando rápido, um exemplo de escritora mulher (inglesa) é Jane Austin. Toda questão está no fato de que a noção de clássicos envolve a possibilidade que algumas culturas tiveram de se difundir pelo mundo graças à preponderância bélica/econômica/política de seus povos. Naturalmente, há uma leva de “clássicos mais contemporâneos” que fogem um pouco das limitações geográficas citadas. Porém, de forma geral por questões históricas, estão excluídos dos “clássicos” um sem número de autores de África, Ásia e América Latina. Ainda pior: mesmo com a inclusão de escritores de fora dos Estados Unidos e da Europa entre os clássicos no último século, por diversas questões de gênero, a entrada de mulheres nessa lista ainda é bastante lenta. Restringir-se aos clássicos é, em suma, restringir-se a uma visão relativamente homogênea (ocidental/masculina) de mundo.

Uma vez, em uma aula de um curso de idioma, iniciou-se uma discussão justamente sobre ler os “clássicos”. Uma senhora defendia veementemente que os jovens tinham que lê-los. Eu argumentava que alguns autores que ainda não fazem parte desse seleto rol podiam dizer muito aos jovens, como, por exemplo, Mia Couto. Sua resposta foi que, ainda que reconhecesse o valor do autor moçambicano, quem já lera Guimarães Rosa, já estaria habituado à mesma temática. A resposta tem certa graça. Para ela, Guimarães Rosa já estava a priori incluído entre os autores clássicos, numa demonstração de como o que consideramos clássico tem muito a ver com nosso etnocentrismo. Me pergunto quantas listas de clássicos da literatura mundo a fora não incluiriam Homero, Shakespeare ou Cervantes (não por coincidência, autores de países que construíram Impérios e difundiram sua cultura e língua para muito além de suas fronteiras). Agora, quantas dessas mesmas listas feitas fora do Brasil incluiriam autores brasileiros?

Isso não é motivo, de forma alguma, para não ter na estante Sagarana e Grande Sertão: Veredas. Não se preocupe com o status do livro, comece sua incursão pelo mundo das letras por onde lhe parecer melhor. Você e os “clássicos” se encontrarão em algum ponto do caminho.
 

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(sobre a vida, o universo e tudo mais):

  1. Muito bom o texto! Lembrei de outro clássico de uma mulher, o "Frankstein"de Mary Shelley.

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  2. Lembrei muito da livraria do 1º andar do Rio Sul,onde passava bons momentos com o livreiro Luiz selecionando livros que atraísse a sua atenção e curiosidade.
    Deu certo...

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  3. Isso é que se poderia chamar de estímulo a leitura ! Mesmo a aqueles que costumam ter sempre um livro na sua mesinha de cabeceira.

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