quinta-feira, 17 de abril de 2014

Réquiem para Gabo

{Casa de veraneio de Gabriel García Márquez, numa esquina de Cartagena}

A notícia chegou como se fora de alguém próximo. No final da tarde, recebi uma ligação de uma grande amiga.

- Estou na casa da serra e sem internet. Acabaram de dar a notícia na GloboNews. Precisava ligar para alguém que eu soubesse que ia sentir a notícia como eu.

Pouco depois, recebo por WhatsApp uma mensagem do meu cunhado repetindo a informação. Ao que parece, eu era alguém cujo lamento pela perda era esperado. Faz sentido, por isso divido aqui um pouco com vocês.

 
O destino tem suas providências. Não dei muito certo com Cem Anos de Solidão. A profusão de José(s) Arcádio(s) e Aureliano(s) Buendía(s) me deixou completamente zonza até a metade do livro. Abandonei a leitura com a idéia de um dia retomá-la, o que nunca aconteceu. Por sorte, estando em Cartagena das Índias no começo de março, achei que era momento de uma reaproximação (falei um pouco sobre isso aqui). Comprei O Amor nos Tempos do Cólera pouco antes de deixar a cidade. Terminei de ler o livro com o coração na mão na madrugada da última quarta-feira, em uma dessas noites em que a literatura vence o sono. Que livro lindo! Me reconciliei definitivamente com a escrita de Gabriel García Marquéz. Que bom que foi antes de ele partir.

Concordando ou não com seus posicionamentos ideológicos, apartar a lembrança do escritor de seu papel político seria desmerecer, ao meu ver, duas funções importantíssimas do autor. A primeira delas, a qual sou especialmente grata, foi seu papel no desenvolvimento junto a UNESCO do Relatório Um Mundos, Muitas Vozes, publicado em 1980. Nele, a importância do acesso à comunicação é tema principal, assim como as desigualdades no tocante a distribuição dos meios de comunicação ao redor do mundo. O relatório, também conhecido como MacBride, nome de seu organizador, foi tão polêmico que levou ao afastamento de Estados Unidos e Reino Unido da UNESCO por mais de uma década.

A segunda contribuição é mais ampla e pode ser entendida a partir do trabalho de Walter Mignolo, teórico argentino que se dedica ao tema da colonialidade do saber. Para Mignolo, a noção do norte-global (em suma, Estados Unidos e Europa) como fonte do pensamento teórico, coloca para escanteio diversos conhecimentos não acadêmicos igualmente fundamentais para se entender o mundo. Validando apenas o que é entendido como ciência, descarta-se grande parte do que é produzido em outras partes do globo. “Entretanto, quando ‘narrativas literárias’ são também consideradas teorias em si mesmas, a distinção entre a localização da produção teórica e cultural começa a desmoronar”, diz Mignolo em Histórias Locais/Projetos Globais: Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar. Dessa forma, García Marquéz com seu realismo fantástico foi um terremoto desestabilizador desses espaços de saber fossilizados, levando a América Latina a um outro patamar na inserção de suas visões num mundo de saberes hierarquizados.

O escritor argentino Jorge Luiz Borges, igualmente presente no rol daqueles que fazem da América Latina um dos lugares mais profícuos para a literatura no mundo, disse certa vez: “Sempre imaginei que o paraíso será uma espécie de biblioteca”. Não posso deixar de concordar. E estou certa de que hoje, com a chegada de Gabo, vai ter noite de autógrafos.
 

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