terça-feira, 6 de maio de 2014

Macacos


{André e a estátua de babuíno no setor de arte egípcia do British Museum}

Como avisei a vocês, e prometi a mim mesma desde o começo do blog, não pretendo aqui entrar em polêmicas e em política. Me dá uma preguiça macunaímica só de pensar em elaborar um argumento mais estruturado
,
ainda mais para tratar das questões cada vez mais bobas e rasas que se tornam de primeira ordem pelos motivos mais tortos. Por isso, aproveitando que a poeira já baixou um pouco, me arrisco a falar rapidamente sobre o caso da banana lançada durante uma partida de futebol, que foi comida pelo jogador Daniel Alves como forma de desconstruir a pretensa ofensa de um idiota racista. Enquanto a atitude em resposta era aplaudida, começou no Brasil um movimento encabeçado no primeiro momento por Neymar que propagava a hashtag somostodosmacacos. Iniciou-se uma gritaria por vários motivos: uns apontavam que se tratava de um golpe de marketing para vender camisetas previamente produzidas, outros defendiam que era uma forma de banalização do racismo por pessoas que não conheciam na pele a discriminação. Minha opinião sobre isso tudo? Minha opinião é que isso não me importa, só estou relembrando tudo para chegar onde eu quero, então senta aí e continua lendo, por favor.

Estou lendo um livro bastante básico, mas incrivelmente bom sobre história e cultura africanas chamado A África explicada aos meus filhos, de Alberto da Costa e Silva. O autor é historiador e grande conhecedor da história do continente, tendo sido inclusive embaixador do Brasil em Lagos (Nigéria) e Porto Novo (Benim). No livro, esbarrei hoje na seguinte passagem:

“E a essa distância do litoral, não era incomum encontrar quem jamais tivesse visto um europeu ou dele só recebesse as mais vagas notícias. Para uns, por exemplo, parecia mais macaco do que gente, porque tinha o corpo com pelos e era quase sem lábios” (Em A África explicada aos meus filhos).

A imagem do macaco como a representação do “outro”, daquilo que não se consegue explicar e é visto de forma negativa, é brilhantemente explorada (de forma inversa – primeiro como “outro” para depois se descobrir ser um macaco) no conto Assassinatos na Rua Morgue, de Edgar Allan Poe. Um dia, com calma, prometo voltar a esse texto aqui, porque é realmente o tipo de escrito que vale a pena destrinchar com mais vagar. Mas voltando ao que estava falando, o macaco causa estranheza justamente pela sua proximidade com os seres humanos e que, por isso, nos lembra constantemente da linha tênue que nos separa dos animais. Causa estranheza porque, no fundo, nos identificamos nele e por isso fazemos o máximo possível para marcar nitidamente a nossa diferença. Talvez, definir alguém como macaco seja a forma mais primitiva de tentar dizer “eu não sou igual a ele(a)”, quando todas as outras formas de diferenciação não se mostraram eficazes.

Tem a ver com as três feridas narcísicas apresentadas por Sigmund Freud, todas elas descobertas que de alguma forma feriram o orgulho do ser humano como centro de tudo. A primeira das feridas, aberta por Copérnico, foi a descoberta de que a Terra não está no centro do universo. A segunda delas foi a teoria darwinista, que refuta a idéia de que fomos feitos à imagem e semelhança de um ser maior e conclui que viemos, olha ele aí de novo, do macaco. A última delas teria sido aberta pelo próprio Freud quando ele constata que não estamos sequer no comando do nosso próprio “eu”, pois há áreas que não somos capazes de controlar e acessar facilmente como o inconsciente. É justamente nessa dificuldade de aceitar que não somos o suprassumo do que há no mundo que passamos a querer nos diferenciar a qualquer custo, vendo o que está no “outro” como algo pior do que somos, por menor que seja a distinção. Eis aí o narcisismo das pequenas diferenças.

A pretensão não é, de forma nenhuma, relativizar o racismo. Pelo contrário, acho que deve ser justamente destacado que, entre todas as características que diferenciam os “outros”, a cor da pele continua tendo uma força tremenda frente a outras tantas especificidades. Isso não pode ser esquecido ou negligenciado. Jamais saberei exatamente o que é ser discriminada pela cor da minha pele, assim como um homem jamais saberá o que é ser discriminado pelo seu gênero, e um europeu jamais saberá o que é ser discriminado por ter nascido no sul global. Mas identidades se sobrepõe e é justamente essa capacidade de entender que somos muitos que torna as distâncias entre o “eu” e o “outro” menores. Há inclusive estudos que dizem que a leitura de livros de ficção ajuda muito essa compreensão, porque faz com que o leitor veja argumentações a partir de outras visões e tenha a capacidade de se colocar no lugar do “outro”. (Este texto em inglês fala um pouco sobre isso: http://well.blogs.nytimes.com/2013/10/03/i-know-how-youre-feeling-i-read-chekhov/?_php=true&_type=blogs&_r=0)

Por último, uma história meio anedótica da qual lembrei quando estava lendo o trecho de A África explicada aos meus filhos que destaquei acima. A esposa do chefe dos porteiros do prédio em que moram meus pais trabalhou como empregada alguns meses para minha mãe, logo que se casou. Pouco depois, parou de trabalhar e engravidou. Sempre que ia ao prédio, levava a filha para a minha mãe ver e ficavam algum tempo batendo papo. Um dia, meu pai tinha acabado de voltar da praia e estava só de bermuda no quarto quando a menininha veio com a mãe fazer uma visita. Foram para a sala e minha mãe falou para a menina ir dar um beijo no meu pai, que ia gostar de revê-la. A garotinha foi com a mãe até o corredor e o meu pai, na intenção mais carinhosa possível, apareceu no corredor e se abaixou inclinando o corpo para frente, para ficar mais na altura da criança. O que ninguém contava era que a imagem de um homem todo peludo meio agachado no final do corredor seria o equivalente a um monstro na cabeça da menina. Ela abriu o berreiro e se agarrou muito assustada à mãe. Logo ficou claro o que ela tinha enxergado. Meu pai foi a visão mais próxima que ela já viu de um orangotango fora da jaula. Evidentemente, nenhum ser humano é macaco, mas estamos todos mais perto deles do que gostamos de admitir quando não é uma questão de modismos.


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  1. Babei, me perdí, tornei a ler ,voltei, parei para pensar e de novo me encontrei tentando reler, mas daí então, aceitando a sociologia imposta por cada atitude ou gesto . Caraca Gabriela ! Que nó maravilhoso e que despertar de capacidade que você faz desabrochar em cada linha. Amei igualmente o babuíno e o "genrinho" , do museu !

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