terça-feira, 13 de maio de 2014

Minha estrada de tijolos amarelos

{Eu e os "tijolos amarelos" na Livraria El Ateneo, em Buenos Aires}

A literatura entrou na minha vida de maneira natural.

Meu pai veio de uma família de literatos e os saraus eram uma constante na sua infância. Embora nunca tenha sido um grande leitor, tem uma capacidade invejável de recitar poemas que aprendeu 70 anos atrás com a naturalidade de quem comenta a previsão do tempo. Já minha mãe, mais chegada à leitura, fez de mim uma leitora compulsiva, transformando os livros em objetos acessíveis desde que nasci. Deu no que deu.

Entretanto, a literatura foi se tornando cada vez mais importante na minha vida por outros tantos motivos. Sofri bullying no colégio, principalmente entre os meus sete e onze anos, quando a prática ainda não tinha esse nome pomposo. E para quem sofre bullying, não há nada pior do que o recreio. É o momento em que se está mais desassistido por adultos e, consequentemente, se torna um alvo mais fácil. A minha solução era passar os recreios na biblioteca. Foi durante esse tempo que li, por exemplo, quase toda a série de Astérix e Obélix. Outro grande problema do bullying é que ele não acaba quando termina. Mesmo depois que as investidas contra a criança param, o medo de ser hostilizado(a) acompanha o indivíduo por um tempo muito maior do que a violência (física ou psicológica) em si. Durante muito tempo continuei encarando qualquer tipo de aproximação de colegas de turma como uma ameaça, o que fez com que continuasse me isolando voluntariamente por questão se segurança. Continuei passando os recreios na biblioteca até meus quinze anos.

Mas ainda que a biblioteca fosse um refúgio, não foi esse o lugar em que a literatura se mostrou extremamente importante para mim no colégio. O momento de epifania veio para mim quando tivemos que ler e debater em sala de aula na 5ª série (hoje, 6º ano) o mito de Gilgamesh. A história desse rei sumério conta sua saga como monarca na Mesopotâmia e sua epopéia em busca da fórmula da imortalidade. Num dado momento, o herói encontra uma planta que lhe garantiria a vitória sobre a morte, mas no último instante, perde a erva que lhe tornaria eterno. Na sala de aula, com a turma toda reunida, a professora checava a leitura fazendo perguntas que eram respondidas em coro. Por último, perguntou se Gilgamesh havia se tornado imortal. A turma toda respondeu em uníssono “não”, enquanto eu respondi “sim”. Como não há nada melhor do que pegar o CDF num erro, começaram os dedos apontados dizendo que eu estava errada e que não havia lido o livro. Prontamente argumentei que se estávamos falando sobre Gilgamesh e sua história tinha chegado até nós, milênios depois de sua existência, ele havia sim se tornado imortal. Houve um momento de mal-estar. A professora de português interrompeu o silêncio, olhando séria para mim.

- Eu estou arrepiada. Foi para ouvir respostas como essa que me tornei professora de português.

Naquele segundo descobri o meu espaço. Na sala de aula eu podia ter a força que não tinha fora dela contra um batalhão de crianças de onze anos. Ali, descobri que talvez o meu olhar sobre as coisas fosse um pouco diferente e que minha capacidade de análise podia ser usada a meu favor. Descobri, por fim, que a leitura seria minha aliada e um caminho a seguir para encontrar respostas que estavam além do conteúdo dos livros. Uma espécie de estrada de tijolos amarelos, como a que leva Dorothy no livro O Mágico de Oz ao mago que lhe daria as respostas que buscava. Não por coincidência, Dorothy descobre por fim que o mágico não pode ajudá-la e que as respostas que desejava já haviam sido encontradas no caminho que percorreu. Obviamente, também comecei a usar essa habilidade no colégio de forma desequilibrada, como escudo. Hoje, entendo que esse é o motivo pelo qual muitos alunos tidos como CDFs são arrogantes. A exibição desmedida e infantil da sua capacidade intelectual é uma das suas únicas possibilidades de afirmação no ambiente escolar.

Por outro lado, anos depois, já adulta, percebi que a literatura seria minha aliada em uma grande deficiência intelectual. Não tenho facilidade de compreender abstrações e por isso recorro a exemplos sempre que posso. Isso se tornou claro para mim pela primeira vez nas aulas de química do Ensino Médio. Era totalmente incapaz de entender a noção de átomo e, ao mesmo tempo, não conseguia passar por cima e apenas repetir o que deveria. Supostamente, o problema estaria superado assim que não precisasse mais ver matérias ligadas às ciências exatas, mas não é bem assim. Se na faculdade de jornalismo o manejo de temas abstratos não era comum, o mesmo não aconteceu no mestrado de relações internacionais. Logo vieram as teorias pós-estruturalistas e minha capacidade de compreendê-las era a mesma de entender que diabos era um mol. Aos poucos, fui traçando paralelos com a literatura para me situar. No mesmo ritmo, fui enchendo meus trabalhos acadêmicos de referências a romances, não como forma de demonstrar conhecimento, mas sim de mitigar minha dificuldade com as abstrações. Foi assim que encontrei, por exemplo, ilustrações para a noção de inimigo de David Campbell no livro 1984, de George Orwell. Lá estava, mais uma vez, a literatura para me salvar.


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  1. 42.


    Ah, mais uma coisa: Adoro seu blog. :)

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  2. Gabriela, sempre que você posta alguma coisa eu venho aqui ler! Você é sempre encantadora. É pessoalmente e consegue transmitir isso quando escreve! Parabéns, continue escrevendo pra gente! Beijos, Mariana Pires (não tinha conta para publicar sem ser anônimo)

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  3. A cada tema, de cada comentário , de terça ou sexta, a delícia da descoberta de novos pedacinhos desta menininha MENINA, desta pessoinha, PESSOA, deste serzinho SER.
    Máxima, confirmada : " A fruta nunca cai longe do pé " !

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