terça-feira, 3 de junho de 2014

Malucos de palestras

{Estátua em homenagem aos malucos de palestra na Cow Parade}

Coleciono há vários anos histórias sobre malucos de palestras. Até hoje, só as compartilhei com a família e amigos próximos. Quando li na revista Piauí de outubro de 2010 um texto sobre os famigerados “loucos de palestra”, me deu uma vontade danada de contar minhas experiências, que só foram aumentando daquela data até aqui. Essa vontade de falar pode ser a manifestação do maluco de palestra que existe escondido dentro de mim. Que auditório melhor do que o meu próprio blog?

São muitos os casos, mas separei aqui os mais antológicos. Juro de antemão que são relatos verdadeiros, por mais difícil que seja acreditar que essas cenas tenham ocorrido no mesmo universo em que você habita. É preciso dizer que todos os casos relatados têm testemunhas, dois deles têm inclusive testemunhas próximas, logo, não se tratam de alucinação minha. Terminada essa introdução digna das figuras que irei retratar, vamos às histórias.

Eu adorava a Casa do Saber e era uma aluna assídua desde que esse espaço para cursos abriu no Rio. Com o crescimento da Casa, fui desgostando de algumas coisas, mas a que me fez deixar de esperar o catálogo semestral com entusiasmo não é propriamente culpa da organização. A fama crescente fez com que os cursos começassem a atrair malucos endinheirados, ávidos por contar seus pensamentos estapafúrdios. Estava inscrita num curso de religiões ministrado por um professor com quem já tinha feito uma aula antes e que sabia que era genial. Logo no final da primeira aula, um senhor pediu a palavra e, para a minha surpresa, metade da platéia bufou enquanto um quarto dela se levantava e ia embora. O sujeito já era um conhecido maluco de palestra para aquela audiência. Tendo recebido permissão para falar, o senhor comunicou que antes de ir para a aula tinha achado um texto que tinha tudo a ver com o assunto que seria abordado e, por isso, trouxera um “pequeno” trecho. Sem qualquer constrangimento, sacou do bolso as seis laudas previamente preparadas e começou a ler o texto que não acrescentava absolutamente nada à exposição do professor. No encontro seguinte, depois de uma aula fantástica sobre Reforma Protestante, o mesmo senhor pediu a palavra para desespero dos outros alunos. Dessa vez, admirei a coragem e a criatividade.

- Professor, pensando bem no que o senhor apresentou, podemos dizer que os camponeses eram mais luteranos do que o próprio Lutero?

O desconforto era visível no rosto do professor, que costuma fazer colocações bem irônicas, mas não podia dar a resposta merecida ao aluno (bem) pagante. Tentou escapar balanceando a dificuldade de dizer que alguém possa ser mais luterano do que o próprio criador da corrente de pensamento, mas tenho certeza que o sarcasmo que teve que engolir não permitiu que ele dormisse à noite.
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Outra história maravilhosa aconteceu durante uma sessão do festival de cinema “É tudo verdade”. Uma amiga, que na época ainda estava na faculdade de História, me convidou para ver o documentário Cidadão Boilesen, que seria seguido por uma conversa com o diretor. Tratava-se do perfil do dinamarquês que foi presidente da Ultragás, grande distribuidora de gás no Brasil, e que é acusado de financiar e apoiar a tortura durante a ditadura militar. O filme era mesmo muito bem feito, mas no final da exibição cometeram o grande erro: abriram espaço para perguntas. Todas foram bem estranhas, mas o ápice aconteceu quando um rapaz com cara de intelectual pegou o microfone. Com ar professoral, soltou a frase que até hoje é inesquecível:

- Assistindo ao documentário, pude chegar à conclusão de que o gás é mau.

Ficamos confusas e olhamos uma para outra. Ainda tentando encontrar algum sentido, nos perguntamos se ele teria falado “o Geisel é mau”, embora não houvesse muita razão aparente já que nenhum dos presidentes militares havia sido mencionado no filme. O rapaz podia ter uma raiva especial desse ditador entre os demais, mas era difícil entender a lógica. Com o decorrer da sua fala não houve dúvida, era isso mesmo: “o gás é mau”.

- Boilesen era apoiador da tortura e era presidente da Ultragás, empresa distribuidora de gás. Hoje, as milícias controlam a distribuição de bujões de gás nas comunidades. O gás sempre está relacionado com atos de crueldade. Por isso eu digo, o gás é mau.
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Naturalmente, deixei a melhor para o final. Essa história é tão surreal que eu só acredito que ela realmente existiu porque um grande amigo trabalhou na organização do evento e também foi testemunha ocular. Caso não tivesse alguém com quem confirmar que realmente havia assistido à tal situação, acreditaria que alguém colocou LSD no suco de laranja que tomei antes de entrar na sala de conferência. É tão épico que decidi contar no presente, por efeito estilístico. Visualize só a cena:

O CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) havia organizado um evento sobre meio-ambiente em parceria com a Fundação Konrad Adenauer. A palestra teria lugar no Memorial Getúlio Vargas, numa praça perdida da Glória. Ou seja, não é um lugar em que você dá uma passadinha por ser perto do seu caminho, você tem que realmente se programar para chegar nesse auditório bem na contramão de tudo. Chego, encontro meu amigo, tomo um suco de laranja no breve café da manhã oferecido antes da palestra e me dirijo para o meu assento. Todos os palestrantes já estão presentes e conversam em um pequeno grupo na frente do estreito tablado onde colocaram suas respectivas cadeiras. São eles: o deputado Fernando Gabeira, o embaixador Marcos Azambuja e o convidado de honra, um representante do Parlamento Europeu cujo nome eu honestamente não me lembro. A exposição de cada um dos convidados começa, havendo inclusive tradução simultânea por causa do parlamentar europeu, que faz sua fala em inglês. Terminadas todas as exposições, abre-se espaço para perguntas (sempre o erro fatal). Algumas pessoas perguntam coisas relevantes, umas em inglês, outras em português contando com ajuda da tradução. Eis que surge uma mão roliça levantada, para a qual é entregue o microfone. Em um anfiteatro, não existe motivo razoável para se levantar antes de falar. A forma da platéia já é pensada para que todos possam ver e ser vistos. Quando a balzaquiana de formas avantajadas se levanta para falar, o espetáculo já está armado.

- Em primeiro lugar, gostaria de pedir desculpas por não fazer minha pergunta em inglês, mas é que a emoção não permite.

Peraí, pára tudo. Quem é que se emociona com uma palestra extremamente formal sobre meio-ambiente? Já imaginei a tal moça às lágrimas escutando sobre energia renovável. Nesse momento, já está claro que se trata de uma autêntica maluca de palestras, mas está longe de parar por aí. Na seqüência, ela fala uma carrada de palavras que formam sentenças ininteligíveis, com aquele ar de autoridade que é ponto comum em todos dessa espécie. Quando nada parece poder ficar pior, ela continua:

- Por isso, venho aqui pedir solenemente ao embaixador Azambuja, que perante as câmeras...

Enquanto ela parece apontar para uma das filmadoras que registram o parco evento, o embaixador, a quem nunca fui apresentada, mas por quem nutro grande simpatia graças a seus artigos para a revista Piauí, se agarra aos braços da sua cadeira. Não o culpo, eu também ficaria com medo. Já não sei mais para quem eu olho: se para a expressão de apreensão do embaixador e dos demais palestrantes, se para a careta do meu amigo que está entre um ataque de riso e a total perplexidade, ou se continuo olhando a mulher, tentando adivinhar o que está por vir.

- ... que ele me conceda uma cópia do vídeo dessa palestra para que eu possa usá-la na monografia que um dia farei! Eu estava muito decepcionada com o Brasil até assistir essa palestra. Porque eu tenho cidadania italiana.

E acabou. Não, eu não estou pegando fôlego para continuar a transcrição do solilóquio niilista. Ela termina o discurso com a frase “porque eu tenho cidadania italiana”, sem nenhuma informação adicional. O embaixador murmura no microfone alguma resposta como “veremos a viabilidade de lhe dar uma cópia do vídeo” e os organizadores entregam o microfone para outro espectador, tentando retomar o ritmo do evento. Não adianta, ninguém mais se esquecerá da brilhante exposição da maluca.  A história se tornou tão antológica que quase todos meus amigos já me ouviram contá-la. A ponto de um dos meus padrinhos de casamento fazer questão de relembrá-la durante seu discurso nas bodas, começando com “peço desculpas por não fazer meu discurso em inglês” e terminando com “porque não tenho cidadania italiana”. Essa querida insana terá sempre um lugar especial nas minhas memórias. Se o objetivo de todo maluco de palestras é ter uma presença marcante, ela conseguiu e já pode morrer feliz. Jamais vou esquecê-la.

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  1. Haha ri bastante, maluco de palestra é uma figura clássica, também já presenciei vários em ação... para mim, se confunde muito com o mala de palestra, aquele cara inconveniente que faz todo mundo bufar.

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