terça-feira, 24 de junho de 2014

Ser Pingüim

{Pingüins no Oceanário de Lisboa}

São raras as vezes em que escrevo ficção. Estou mais para a crônica do que para o conto. Entretanto, há um pequeno texto que escrevi como redação para uma aula de espanhol que achei que merecia ser traduzido para entrar aqui no blog.
Conto para vocês a história dele.

O professor havia pedido em sala de aula para que cada um escrevesse o nome de um animal num papel e três características que chamassem nossa atenção nele. Pingüim sempre foi meu animal preferido e, por isso, foi uma escolha óbvia para mim. Não lembro bem quais foram as outras duas especificidades que escrevi, mas me lembro que uma delas era “eles têm asas, mas não podem voar”. Quando tivemos que falar em voz alta nossos bichos favoritos, a turma começou a criticar sem parar minha escolha. Acharam bobo escolher um animal tendo como justificativa uma limitação. Além de desnecessário, foi deselegante e tacanho. (Por experiência própria, turmas de curso de idioma em geral ou tem uma química que dá muito certo, ou muito errado. Isso independe da qualidade do professor. Infelizmente, com mais freqüência do que o contrário, parecem ser uma concentração de pessoas que se reúnem para chafurdar no senso comum.)

Me abstive do debate. Porém, no mesmo dia, o professor pediu como dever de casa uma redação de tema livre. Sabia que apenas ele leria o texto e que, com isso, não ia colocar mais lenha numa discussão inútil. Mas decidi que iria à desforra naquele pedaço de papel. O resultado foi o texto que traduzi e copio abaixo. Acho que a história de O Patinho Feio vai nesse caminho, mas tem um final simplista. Ao invés de dar uma resposta para a questão da feiura do patinho, a fábula reduz o problema no último minuto ao dizer “o patinho – que era na verdade um cisne – no final das contas era bonito”. Quando para mim, o verdadeiro ponto é “e daí que ele era feio?”. Vai ver ele era charmoso à beça.

Da mesma forma, o Pingüim não pode mudar as suas asas, mas pode escolher o que fazer com elas.

---x---

Ser Pingüim

Faz muitos anos, o pingüim descobriu que, ainda que tivesse asas, não podia voar. Não compreendia porque tinha acontecido justo a ele ter asas e não poder usá-las como faziam as outras aves. Não era justo. Como se não bastasse ter que viver na Antártica, lugar tão frio quanto uma geladeira, estava condenado a ficar em seu bloco de gelo. Um dia, quando já tinha tentado de tudo, olhou para o mar. Percebeu que o infinito do oceano se parecia com o céu, mas ainda não tinha tentado ali. Fechou os olhos e saltou na água. Por um minuto, acreditou que afundaria, mas percebeu que naquele meio a suas asas funcionavam. Ele podia voar na água!

O pingüim não era a única ave que não podia voar. A histérica galinha não aceitava sua condição. Gritava e saltava na fazenda batendo as asas, tentando provar a todos os animais que conseguia voar. Entretanto, caía poucos metros à frente e recomeçava sua encenação. O avestruz, com mais de cem quilos, corria para ganhar velocidade, mas nunca pôde sair do solo. Envergonhado, escondia a cabeça embaixo da terra.

Enquanto isso, o pingüim nadava (ou voava?) cada dia melhor. Estava tão ágil na água quanto qualquer ave no ar. Através do oceano conhecia as praias da América do Sul, a costa africana e até os mares da Oceania. E ele que pensou que jamais sairia do seu bloco de gelo...

O pingüim descobriu o que se leva anos de psicanálise para entender: as limitações existem e há de se viver com elas, por mais que pareçam insuperáveis. Querer o céu é bom, mas de nada vale o desejo se ele paralisa. É preciso usar as vantagens e possibilidades que se tem. Assim como o pingüim, cada um deve encontrar seu meio.

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  1. Quem disse que ficção não é sua praia? Parabéns, belo texto!

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  2. Parabéns, que venham mais textos de ficção. E a crônica em lugar de explicação também, belo prólogo. Adoraria ler a versão do conto em espanhol, e seguir o seu caminho pelas imagens nas duas línguas

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    1. Susana, obrigada pelo carinho! Segue no comentário abaixo a versão original do texto. Um beijo

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  3. Para Susana, e quem mais se interessar, aqui vai a versão original da fábula em espanhol (desculpem, é possível que contenha um erro ou outro de grafia):

    Ser Pingüino

    Hace muchos años, el pingüino descubrió que aún tenía alas, no podia volar. No comprendía porque le toco a él tener alas y no poder usarlas como hacían las otras aves. No era justo. Como si no bastara tener que vivir en la Antártica, lugar tan frío como una nevera, estaba condenado a quedarse en su bloque de hielo. Un día, cuando ya había intentado todo, miró el mar. Percibió que el infinito del océano se parecía con el cielo, pero todavía no había probado allí. Cerró los ojos y saltó en el agua. Por un minuto creyó que se hundiría, pero percibió que en aquel medio sus alas funcionabam. ¡Él podía volar en el agua!

    El pingüino no era la única ave que no podía volar. La histérica gallina no aceptaba su condición. Gritaba y saltaba en la finca, batiendo las alas, intentando probar a todos los animales que podía volar. Sin embargo, caía pocos metros adelante y recomenzaba su escenificación. El avestruz, con más de cien kilos, corría para ganar velocidad, pero nunca pudo salir del suelo. Avergonzado, escondia la cabeza bajo la tierra.

    Mientras eso, el pingüino nadaba (¿o volaba?) cada día mejor. Estaba tan ágil en el agua cuanto cualquier ave en el aire. A través del océano ya conocía las playas de América del Sur, la costa africana y hasta los mares de la Oceania. Y él que pensaba que jamás saldría de su bloque de hielo...

    El pingüino descubrió lo que se lleva años de psicoanálisis para entender: las limitaciones existen y hay que vivir con ellas, por más que parezcan insuperables. Querer el cielo es bueno, pero de nada vale si el deseo solo paraliza. Es necesario utilizar las ventajas y las posibilidades que se tiene. Así como el pingüino, cada uno debe encontrar sus medios.

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    1. Que delícia de se ler, Gabriela. Si, qué bien suena realmente! O ritmo, as imagens, as palavras. Um beijo

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