sábado, 26 de julho de 2014

Bagagens: Timor-Leste III


{Vista da Ilha de Ataúro ao fundo a partir da orla de Díli}

Antes de ir a Timor-Leste, resolvi aproveitar para fazer meu check-up anual. Fui ao meu médico, que me conhece desde o começo da adolescência e por quem tenho um carinho enorme. Ele recebeu a notícia da minha viagem com um sorriso.


- Você vai viver uma aventura saída de um livro de Graham Greene!

Não sei quanto a você, mas quando alguém que respeito e admiro compara de alguma forma minha vida aos livros do meu autor favorito, sem dúvida me deixa ainda mais apaixonada. Depois de uma consulta recheada por perguntas sobre Timor e troca de impressões sobre Greene, sai com duas receitas: uma para uma ultrassonografia dos membros inferiores (por causa das cerca de 30 horas que passaria em aviões); e outra com referências de uma adaptação específica de Fim de Caso para o cinema. Como não ser fã de um médico que para além da sua reconhecida capacidade profissional dá a você uma receita com referências literárias? Houvesse mais disso, o mundo era um lugar com pessoas mais sãs.

A história me veio à mente com toda força depois que passei um jantar falando sobre Timor-Leste nessa última semana. Calhou de coincidir com a minha leitura de Um Lobo Solitário, livro de não-ficção de Greene que conta sua experiência no Panamá. Nele, o autor inglês narra as peculiaridades do país da América Central e por isso me peguei pensando em tantas pequenas histórias que contam mais sobre a vida em Timor do que qualquer trabalho acadêmico que possa escrever sobre essa ilha. 

Lá pela minha segunda semana em Timor-Leste, alguém resumiu com uma fala algo pelo qual eu vinha passando constantemente. A noção de tempo em Díli, capital timorense, não responde ao mesmo compasso a que estamos acostumados no dito “ocidente”.

- Aqui, tudo pode se resolver numa tarde, mas nenhum compromisso marcado com mais de três dias de antecedência acontece.

Parece piada, mas é a mais pura verdade. Você é capaz de em um único dia conversar com uma figura proeminente do governo que o/a coloca na mesma tarde para falar com um herói nacional. Porém, se combinar com a pessoa que for de almoçar três dias depois, esqueça!, esse encontro será desmarcado horas antes. Isso aconteceu comigo mais de uma vez e parece se repetir incontáveis vezes com outras pessoas que vivem por lá.

Outra coisa engraçada era o fato de que eu era repetidamente lembrada de que estava numa ilha – mais que isso, numa ilha pequena. Acontecia de várias maneiras, mas para mim a mais pitoresca era o fato de as pessoas terem certa afeição aos navios e os conhecerem pelo nome. O Nakroma, barco que liga o enclave de Oecusse e a ilha de Ataúro a Díli, estava quebrado há algum tempo e assim permaneceu pelas três semanas em que lá estive. Entretanto, não passava um dia sem que alguém se referisse ao Nakroma e seu estado como se falasse sobre a saúde de um velho amigo. Tenho absoluta certeza que, se Graham Greene tivesse visitado Timor-Leste, citaria o Nakroma num livro seu. E tenho certeza que em seu livro o Nakroma jamais sairia do porto apesar de todas as expectativas.

Por último, outra história digna de Greene e que remeteu mais uma vez à condição insular de Timor. Saindo de um jantar com um amigo que fiz durante minha estadia, paramos no caminho até o carro e ele apontou para o mar, que estava à nossa frente.

- Estás a ver o porto iluminado pelos navios?

Fiz que sim com a cabeça e aguardei alguma frase edificante, que elucidaria todas as dúvidas que um dia eu pudesse ter sobre a ilha.

- Quando vires o porto assim, fica feliz. Quer dizer que amanhã terá no pequeno-almoço leite, pão, frutas...

Soltei uma gargalhada pelo inusitado daquele comentário. Mas não deu outra. No dia seguinte, encontrei uma amiga, que também conheci lá, com um sorriso de satisfação no rosto. O motivo era simples: depois de semanas de espera, ela finalmente conseguira comprar um iogurte no supermercado.

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