sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Bagagens: Chile, Ilha de Páscoa

{Bandeira da Ilha de Páscoa e a colina onde acontecem competições do festival Tapati}

Venho contar-lhes a pouco gloriosa história do dia em que achei que minha bexiga ia explodir. Nunca, jamais na história houve vontade maior de fazer xixi. Bardos hão de cantar outras tantas vitórias sobre a morte, mas não fosse este relato, o mundo jamais saberia do dia em que derrotei as forças fisiológicas.

Tudo se passou na Ilha de Páscoa, no festival Tapati de 2013, em que diversas atividades culturais e desportivas tomam lugar para que se escolha quem, por um ano, terá o direito de receber o título de rei da ilha. No dia em que travei minha honrosa batalha, fomos levados a um imenso terreno com um alto monte verdejante. No sopé da montanha, bravos guerreiros semi-nus cumpriam mais uma etapa de sua olimpíada autóctone, lançando afiados dardos em direção de uma estaca fincada no chão. Mais tarde, estava prometida a grande competição da festividade: cada competidor desceria a colina deitado numa folha de bananeira, sem roupa e sem proteção.

A espera até o começo da disputa levemente suicida foi grande. Para piorar, não há inscrições prévias. Assim, podem aparecer dois competidores ou vinte. Para a “sorte” dos expectadores daquele ano, a adesão foi enorme. Não bastasse o tempo gasto com a preparação de cada postulante ao título de rei, havia também todo o tempo gasto com a movimentação das ambulâncias (ou você achou mesmo que a “brilhante” idéia de se lançar morro abaixo deitado numa folha era segura?).

Desde o princípio, pude prever o iminente combate que aconteceria no baixo ventre. As forças da natureza, revoltosas, mostravam seus primeiros sinais. Ao olhar para o lado, percebi que meu bravo companheiro de guerras, André, passava pela mesma tortura. Voltei-me para uma entre os guias que nos levaram até aquele descampado. O que fazer? Onde ir? Ela apontou todo o entorno mostrando que não havia opção. Há de se explicar que a Ilha de Páscoa é conhecida por ser coberta por gramíneas, mas também por não possuir árvores. Não havia onde se esconder. 

André se contorceu naquela luta por alguns minutos mais. Até que, como recurso final contra o inimigo, caminhou a esmo e munido com sua espada resolveu o dilema. Mas e eu desprovida de gládio pela anatomia? Ninguém poderia me ajudar nessa luta atroz contra a própria natureza! Me restava esperar e me contorcer. O incômodo se transformou em dor, que se transformou por um formigamento que descia pelas pernas. Já vislumbrava o meu terrível fim com a bexiga explodida numa ilha a cinco horas de vôo de outros pontos habitáveis da terra.

Depois de horas de suplício, foi anunciado o fim do torneio e o retorno ao palácio que nos abrigava (neste caso, a licença poética é mínima). Já dentro do transporte, reuni minhas últimas forças para o restante do trajeto, que levaria mais cinco ou dez minutos. Levaria, se não fosse o fato de alguns companheiros russos não terem retornado ao local combinado. Ao perceber a situação, amaldiçoei o nobre povo eslavo por cinco gerações. Maldisse todos os russos dois quais pude me lembrar: Rasputin, Anastácia, Dostoievski, Tolstoi, Kasparov... Até encontrarem os tais russos foram mais alguns momentos de sofrimento, em que duas senhoras francesas tentaram puxar conversa. Já quase perdendo os sentidos, consegui ainda murmurar em francês que eu precisava desesperadamente chegar a um banheiro. Elas se apiedaram de mim.

Finalmente, quando chegamos às instalações, tomada por uma força sobrenatural, corri como nunca havia corrido antes. Bradei contra o arquiteto que com empenho estético havia projetado tantas curvas nos corredores. Não havia tempo de correr até o quarto. Como uma flecha, rumei driblando cada obstáculo até o lavabo mais próximo.

A alegria e a glória podem ter várias formas. Nesse dia, elas vieram em forma de um jato.

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