sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Bagagens: Portugal, Lisboa II

{Abraçada pelo pátio interno do Mosteiro dos Jerônimos}

Era uma quarta-feira que chegava com a correria de sempre. Na minha bolsa, estava quase todo o peso do dia: os livros de espanhol, o caderno da aula de comunicação, o material para ser usado no British Council. Só não estavam os cadernos do curso de relações internacionais porque havia um curto intervalo em que eu sabia que poderia passar em casa antes das aulas noturnas. Como de costume, saí às pressas do Instituto Cervantes, com o tempo contado para atravessar a cidade e chegar à faculdade de jornalismo.

No encontro da Rua Santa Marta com a Avenida da Liberdade, resolvi correr ladeira acima até a entrada do metrô que eu já conseguia enxergar. Grande erro. A total ausência de condicionamento físico – que eu insisto em ignorar – já havia me dado provas antes (e me daria muitas outras depois) que qualquer pequena inclinação tem a capacidade de me provocar uma queda de pressão brutal. Andando apressada, então, era tal qual brincar de roleta russa. Some-se a isso o fato de que não tomo café da manhã, por mais que saiba que é uma temeridade. Até compartilho o argumento daqueles que dizem que não tem apetite de manhã, mas a mais pura verdade é que, por ter hábitos noturnos, durmo tarde e só acordo em cima da hora, com tempo de escovar os dentes, lavar o rosto e vestir a roupa separada na noite anterior.

Já podia sentir os efeitos que conhecia muito bem desse coquetel explosivo: uma forte tontura, acompanhada por certo enjôo. Por mais que não pudesse ver meu reflexo, conseguia adivinhar minha aparência absurdamente pálida com os lábios arroxeados. Vergonhoso admitir, mas nenhuma grande novidade para mim. Assim cheguei naquele dia à estação de metrô Marquês de Pombal.

Meu plano era simples. Ia passar pela catraca o mais rápido possível, sentar no trem e comer o lanche estrategicamente mantido na minha bolsa para situações como aquela. É claro que não funcionou. Quando tentei passar meu cartão pelo leitor da entrada, fui avisada que estava sem créditos. Retornei me agarrando às poucas forças restantes para recarregar os créditos mensais na máquina automática da estação. Também não funcionou.

Enquanto lutava incrédula contra a máquina que insistia em não me ajudar, se aproximou de mim um funcionário do metrô. Prontamente começou a dizer com o ar professoral arquetípico dos servidores públicos portugueses que eu estava fazendo a recarga de forma errada. Argumentei que sempre fizera da mesma forma e que aquela era a primeira vez em que ocorria um problema. Ele sequer fez uma pausa para a minha fala e continuou discorrendo sobre como eu estava enganada. Percebi que me manter em pé por mais um minuto que fosse teria como único resultado um desmaio. Enquanto ele continuava em seu solilóquio, eu já sentia tudo rodar em volta de mim. Olhei no fundo dos olhos dele.

- O senhor se importa se eu me sentar no chão por um instante?

Certamente esse não era o tipo de pergunta para o qual ele havia sido treinado. Ainda mais sendo uma pergunta descabida feita de forma tão cerimoniosa. Imediatamente emudeceu. Sentei no chão e abaixei a cabeça até a altura das minhas pernas, esperando o sangue voltar a circular. Ele se acocorou ao meu lado, com semblante aterrorizado.

Expliquei que estava tudo bem, que era apenas uma queda brusca de pressão e que eu já passara por aquilo algumas vezes. Não cheguei a dizer a ele, mas também não era nenhuma novidade para mim o pavor das pessoas ao me verem naquele estado. Ele me olhava atentamente, de muito perto, pensando se deveria buscar ajuda ou não. Nesses momentos, tento manter algum diálogo para que quem estiver ao redor saiba que não estou morrendo e não perdi a consciência. 

- Qual o seu nome?
- Nelson.
- Era o nome do meu tio...

Fazia muito tempo, seu Nelson, que eu não me lembrava do meu tio, marido da irmã do meu pai. O que é uma pena, porque eu gostava muito dele. Até essa alegria o senhor me deu.

É evidente que o senhor percebeu meu sotaque. E também é natural que lhe tenha vindo à mente parte dos estereótipos sócio-econômicos que a minha nacionalidade carrega em Portugal. Somando-se a isso à minha palidez, assustadora tendo em vista minha brancura de nascença, sua pergunta era até previsível. Perguntou se eu havia comido e, com franqueza, respondi que não.

Quis lhe explicar que para dali a alguns meses tinha reservas para o Tour d’Argent em Paris, que se eu estava em jejum não era por necessidade ou por um distúrbio alimentar, era apenas irresponsabilidade. Mas faltou fôlego. Enquanto o senhor olhava com os olhos arregalados para mim, eu disse de forma meio débil que tinha um queijo comigo e prometi comê-lo. Infantilmente, tirei a embalagem vermelha do Babybel da bolsa para provar o que dizia.

Já com um pouco mais de equilíbrio, me levantei e consegui com sua ajuda colocar os créditos que necessitava no cartão do metrô. Agradeci e segui devagar pela esteira rolante, descascando a capa escarlate para dar a primeira dentada no queijo e recuperar o restante da lucidez com um bocado de sal. Esperei pelo meu trem e, quando entrei nele, percebi que o senhor estava na plataforma me olhando entrar no vagão. Seu Nelson, o senhor havia me seguido para assegurar que eu estava bem! Vi a estação se afastar na certeza que a sensação de segurança e carinho que sentia em Lisboa não vinha apenas dos meus amigos. Eu era abraçada pela cidade inteira. 

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