terça-feira, 9 de setembro de 2014

Processo de reconciliação

{Túmulo de Voltaire, no Panthéon de Paris}

A minha relação com a faculdade de jornalismo foi muito conturbada. Diria que continua até hoje, mas, faz pouco tempo, ela começou a mudar.
Não pretendo aqui discorrer sobre a obrigatoriedade do diploma ou sobre a qualidade das faculdades de comunicação. Acho que são assuntos importantíssimos e com desdobramentos políticos sérios, que ultrapassam em muito os muros das redações. Entretanto, o blog está mais para divã do que para palanque e pretendo me agarrar aqui ao inquietamento que me seguiu durante toda a graduação e perdura, em menor escala, até hoje.

Eu fui para a faculdade de jornalismo pelos motivos errados. Não fui na dúvida, fui com convicção. O problema é que confundi – quem não confundiria entre os 15 e 17 anos? – a admiração pelo papel do jornalista como ator social e a vontade de ser jornalista. Eu tinha a primeira, mas achei que tinha a segunda. Só descobri a diferença entre as duas tempos depois e só consegui compreender com clareza o que significava querer estudar o trabalho jornalístico ao invés de fazê-lo no final da faculdade.

Para começar, o maior choque foi a falta de um ambiente acadêmico. Caí na mais prática das disciplinas do departamento de humanas. Toda a expectativa de uma áurea da universidade como lugar de construção de pensamento crítico foi imediatamente colocada em segundo plano por trabalhos de entrevistas e desenvolvimento de reportagens. Não me entenda mal, aprendi muito com tudo isso, mas não era o que eu esperava e me senti por quatro anos um peixe fora d’água.

Agora, aos poucos, começo a perdoar a faculdade. Vejo que foi lá que desenvolvi capacidades que, casadas com o conhecimento acadêmico adquirido no mestrado, formam um perfil profissional diversificado e multidisciplinar que aprecio. No final das contas, foi bom assim, mas só foi possível ver isso com algum distanciamento temporal (nossa, já faz 3 anos que me formei!).

Nesse processo de reconciliação com a faculdade de jornalismo, fui dar uma olhada nos arquivos em que guardo os trabalhos que fiz durante o curso. Imaginei que ali podia haver algum material interessante para ser publicado aqui no blog. E tinha! Afinal, o interesse por livros e viagens vem de criança e também se fez presente durante a faculdade. Aos poucos, vou publicando alguns achados por aqui. Dentre eles, os mais interessantes são algumas cartas que escrevi para a matéria de Estética da Comunicação.

Aqui cabe um pequeno adendo. Tive alguns ótimos professores nas matérias específicas de jornalismo e um dia talvez me anime para escrever sobre essas disciplinas. Porém, as duas cadeiras que verdadeiramente ampliaram os meus horizontes e ajudaram a criar um pensamento mais crítico perante o mundo fazem parte do currículo compartilhado entre todas as habilitações do curso de comunicação. Foram elas: Comunicação Audiovisual e Estética da Comunicação. Cá entre nós, isso se deveu muito ao brilhantismo dos dois professores que ministravam essas matérias, não por coincidência, aqueles com formação mais acadêmica e mais diversificada do corpo docente com que tive contato na graduação. (Seguindo uma política já comum no blog, não vou citar seus nomes, ainda que o que eu tenha a dizer sobre eles e seu trabalho seja extremamente positivo)

Na primeira dessas matérias, comecei a pensar a comunicação de forma mais ampla e a enxergar as implicações políticas de decisões técnicas que envolvem as telecomunicações. Foi lá, por exemplo, que entrei em contato pela primeira vez com o Relatório Um Mundo, Muitas Vozes que muito me serviu durante o mestrado em Relações Internacionais (e do qual já falei no meu texto de “despedida” a Gabo). Para minha maior sorte, fui depois convidada para ser estagiária desse mesmo professor nessa mesma matéria. Foi a primeira vez em que tive a oportunidade de sair do lado das carteiras para ir para o lado do quadro negro. Experiência que mais uma vez me serviria no mestrado (e na vida). Repetindo Sir Isaac Newton, embora ache a frase um pouco pedante demais para o meu gosto, “se enxerguei mais longe, foi porque me apoiei sobre os ombros de gigantes”.

Em Estética da Comunicação, perdi preconceitos sobre arte e fui confrontada pela primeira vez pela idéia de que a visão feminina era negligenciada no mundo. Eu não tinha dúvidas de que existia desigualdade de gênero, e tinha alguma noção da obra de Simone de Beauvoir, mas foi numa aula de História da Arte vista através de artistas mulheres que a ficha caiu definitivamente. Toda a idéia da aula era mostrar a disparidade entre o número de vezes em que mulheres são retratadas em quadros e o número de vezes em que elas são as responsáveis pelas obras expostas em museus. Por sinal, é impossível pisar em um museu (especialmente de arte moderna) sem me lembrar dessas aulas e desse professor.

Seguindo uma didática pouco ortodoxa, o professor de Estética da Comunicação nos comunicou logo no começo das aulas que as avaliações seriam em forma de cartas. Para cada novo tema ou obra aos quais fôssemos expostos devíamos escrever uma carta relatando nossas impressões. Hoje, pensando bem, acho que ali estava um pouco a semente do formato d’O Rio da Minha Aldeia. No intuito de procurar material para o blog, me deparei com algumas dessas cartas, que acho que bem cabem neste espaço. Aos poucos, vou publicá-las por aqui e hoje começo com a que escrevi sobre Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire. Por favor, tenha em conta que as cartas foram escritas quando eu tinha 19 anos e não se assuste com a data: uma exigência do professor era que seguíssemos o calendário árabe, como mais uma forma de sair da nossa zona de conforto.

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Rio de Janeiro, 27 de Jumada‘I Ula de 1429

Caro professor XXX,
desculpe a demora em entregar a carta referente ao livro “Cândido”. Como faz mais de ano que o li, ele estava guardado num armário, o que dificultou bastante o meu acesso a ele. Não queria reler na internet porque queria ver minhas anotações.
            Lembro que comecei a ler “Cândido” pela curiosidade de descobrir no que as pessoas viam tanta graça. Depois de terminado, me dei conta de que a leitura havia sido agradável, mas que nem de longe me arrancou as gargalhadas que todos juravam que iam provocar em mim. Na verdade, em algumas partes, como no período em que Cândido está em Eldorado, achei o livro um pouco enfadonho. De resto, o livro é bem divertido e, apesar de não provocar um riso aberto, a insistência do Doutor Pangloss de sempre achar que, por mais torto que pareça, o mundo sempre estava se encaminhando da melhor forma possível provoca um sorriso gostoso. A loucura de Cândido pela menina Cunegundes e os vários infortúnios pelos quais passam os personagens não são menos ridículos.
            Uma passagem que me chamou a atenção em “Cândido” foi a que narra o reencontro entre o protagonista e o Doutor Pangloss. Nesse trecho, o filósofo conta ao seu aluno que se encontrava a beira da morte por ter contraído uma doença sexualmente transmissível de uma amante. Pelo contexto, fica claro que a doença é sífilis. Pangloss começa a dizer a relação das pessoas que transmitiram a doença para outras, chegando no final a ajudantes do navegador Cristóvão Colombo. Pouco antes eu havia lido na National Geographic que a sífilis era originalmente uma doença de índios da América, que havia sido levada à Europa pelos primeiros desbravadores do continente. Foi uma surpresa que já no século XVIII se tivesse consciência dessa linha de contágio. Fico muito feliz (e porque não confessar, envaidecida) quando descubro nos livros que leio referências a outras coisas que li há pouco tempo.
           Sem me alongar muito mais, acho que foi importante ter lido “Cândido” na época em que li. Foi logo depois do término do Ensino Médio, quando qualquer deboche em relação à idéia de uma inteligência superior do mestre, encarnado pelo Doutor Pangloss, vem acompanhada de regozijo especial.
           Mesmo com todos esses pequenos prazeres durante a leitura, o que fica como aprendizado é a mensagem final: “tudo isso é muito bonito (...), mas o que é preciso é cultivar nosso jardim”.

                                                                                  Até a próxima

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