terça-feira, 28 de outubro de 2014

Heranças

{Pont du Gard, mais bonita herança romana no sul da França na minha opinião}

Nunca recebi uma herança com testamento, espólio e todos os salamaleques. Torço inclusive para que isso demore muito para acontecer. Porém, ao longo dos anos, minha paixão por livros foi ficando mais conhecida entre os amigos dos meus pais. E foi assim que me tornei a menina que herdava livros.

Tudo começou num almoço que minha mãe ofereceu lá em casa para alguns familiares quando eu tinha uns 13 ou 14 anos. Conversa vai, conversa vem, não lembro bem como, mas foi mencionado que além de adorar ler, eu tinha uma fascinação especial por livros de moda (durante a adolescência cogitei fazer o curso de moda na graduação e nessa época acabei formando uma biblioteca pequena, mas digna, sobre o tema. Não que as pessoas possam deduzir isso vendo meu estilo que é uma mescla de clássico e casual, muitas vezes a um passo do desleixado). O que sei é que surgiu a história que o irmão do marido da prima da minha mãe havia morrido ainda jovem e deixado uma grande enciclopédia de moda em vários tomos. Naquele almoço, a coleção foi prometida a mim e pouco tempo depois ela realmente apareceu lá em casa, com seus vários volumes finamente encapados de verde. Uma coisa linda, com ilustrações belíssimas que narram a história da moda desde os primórdios da existência humana. Assim começou minha história de herdeira.

Anos depois minha mãe recebeu num dia qualquer a ligação do advogado dos meus pais (de quem já falei aqui). Um grande amigo jurista havia morrido sem herdeiros e ele estava como responsável por desmontar o apartamento. Ele telefonava para perguntar se eu tinha interesse de dar uma olhada na biblioteca antes que ela fosse doada. Partimos de táxi até o prédio em Copacabana. Quando cheguei lá, as instruções foram muito claras: os livros de Direito serão enviados para a Academia Brasileira de Letras Jurídicas, de resto tudo o que você quiser é seu. Uma coisa de sonho para qualquer bibliófilo. Do apartamento, pelo menos uns dois cômodos eram cobertos por livros e, como bônus, o que deveria ser o quarto de empregada era na verdade mais um pequeno depósito de letras. Fui até bastante tímida e saí com cerca de quinze títulos, entre livros sobre política internacional e curiosidades como um exemplar que se propunha a falar etnograficamente sobre o tabu da virgindade. 

Algum tempo depois, de forma inesperada e triste, faleceu em Brasília o irmão diplomata de uma grande amiga da minha mãe, que eu chamo de tia (já falei das visitas à fazenda dela aqui). Na época eu estava morando em Lisboa e só pude encontrá-la vários meses depois. Nessa ocasião, ela já havia levado todos os pertences para a fazenda e os colocado na casa que ele havia construído para quando estivesse de passagem pelo Brasil. Durante a visita de fim de semana que fiz com o André, ela abriu a casa do embaixador e disse: pega o que você quiser. Eu tive que repetir incrédula: o que eu quiser? E com uma resposta afirmativa não houve timidez, vergonha ou pudor que me impedissem de voltar para o Rio com mais de trinta novas aquisições para a minha biblioteca. É preciso ter em consideração que, por se tratar de um diplomata, a grande maioria dos livros dizia respeito justamente à minha área de interesse. Só para citar alguns, me apropriei de um ótimo dicionário inglês-alemão; de uma versão em inglês de Diplomacy, do Kissinger; de um Rise and Fall of the Great Powers, de Paul Kennedy; de um Ordem e Progresso e um Sobrados e Mucambos que vieram morar junto com o meu Casa Grande e Senzala; além de uma extensa variedade de tomos que versam desde sobre a dinastia dos Habsburgos, até operações do serviço secreto israelense, passando pelo aiatolá Khomeini e o Rei Leopoldo II da Bélgica. Coisa grã-fina, tudo capa dura. Deixam o restante dos meus livros até acanhados.

Eu só lembrei de tudo isso porque, semana passada, minha irmã (de quem já falei em diversos textos como aqui e aqui) me mandou um e-mail. Nele explicava que meus pais já estão com ela no sul da França e que, por coincidência, sua sogra estava de mudança e se desfazendo de alguns livros. No meio deles, ela encontrou uma coleção de 12 tomos falando sobre a II Guerra Mundial em capa dura vermelha. Daqueles livros que são imponentes já pela lombada. No e-mail, ela me mandava fotos dos livros e me perguntava se eu tinha interesse neles. Sim, claro que tenho! Informada que terá que trazer a pequena herança, minha mãe já comunicou que providenciará uma nova mala. Meus pais voltam de navio, o que significa que sua bagagem não precisa obedecer a um limite de peso, e a entrada de livros é isenta de impostos no Brasil. Logo, podem trazer a biblioteca que for, inexiste óbice.

Ao longo da vida, ganhei algumas outras heranças: livros que as pessoas gentilmente tiraram de suas estantes para me dar; um dicionário de latim que uma amiga da minha mãe que era casada com um advogado me cedeu quando comecei a ter aulas particulares do idioma; um romance que peguei de uma pilha de livros dos quais uma amiga estava se desfazendo antes de se mudar para o exterior; exemplares que chegaram até mim pelas mãos do meu pai enviados por amigos que sabem do meu gosto pela leitura; e até mesmo um livro sobre a obra do George Orwell que uma colega de mestrado salvou espontaneamente de um bota-fora para o qual fui convidada, mas não pude ir.

Livros e histórias deliciosas. Mas para quem é viciado, nunca é demais. Não se esqueça de mim se um dia for desmontar sua biblioteca.

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