terça-feira, 10 de março de 2015

Mulheres e literatura

{Obra das Guerrilla Girls exposta no Museu George Pompidou, em Paris}

Na falta de criatividade, todo jornalista que se preze recorre a datas festivas e efemérides. É um caminho fácil e normalmente bobo. Foi assim que surgiu a idéia de falar sobre mulheres e literatura, poucos dias depois do Dia Internacional da Mulher. O assunto é sério (e tem uma forte carga política, na qual não vou me alongar já que o blog tem como política própria não abordar diretamente temas políticos) e merece um cuidado e atenção que não tive tempo de despender para fazer esse texto. Logo, ele deve ser encarado como um brainstorming sobre o assunto.

Como já comentei no texto “Abolindo a recomendação ‘leia os clássicos’”, as mulheres tiveram ao longo da História sua inserção em vários campos limitada por convenções sociais vigentes. No que diz respeito à literatura, não foi diferente. Por isso, se a partir do século XX já temos uma maior quantidade de mulheres escritoras, isso é um fenômeno recente e ainda se distancia consideravelmente da quantidade de livros (bons e ruins) escritos por homens. Na foto que ilustra esse post está uma das obras das Guerrilla Girls, um coletivo artístico de mulheres que critica a sub-representação das mulheres nas artes. Essa obra que fotografei no Museu George Pompidou em Paris (mas que também já vi exposta no museu Victoria & Albert em Londres) pergunta: “As mulheres têm que ficar nuas para entrarem no Museu Metropolitan? Menos de 3% dos artistas nas seções de Arte Moderna são mulheres, mas 83% dos nus são femininos”. Isso naturalmente se repete na literatura. Dessa forma, como em muitos lugares as mulheres ainda têm suas ambições limitadas à esfera da vida privada, diversas visões de mundo são perdidas por não serem sequer levadas em consideração. O que dirá publicadas...

Mas, aí, pergunto a você (e a mim): é menos feminino, ou mesmo feminista, o livro escrito por um homem que consegue falar seriamente e de forma apropriada sobre o universo, os dramas e sentimentos que costumam rondar a vivência de mulheres? Qualquer um que conheça minimamente o repertório de canções de Chico Buarque sabe que há homens capazes de construir eu-líricos femininos impecáveis. Até porque o que pode ser considerado feminino é tão diverso quanto o número de mulheres que existem no planeta. Conversando com amigos em Londres, acabei ouvindo falar do que ficou conhecido como teste Bechdel. Trata-se de um teste simples em que obras cinematográficas são analisadas segundo dois pontos: há na trama um diálogo entre duas mulheres em que o tema não seja um homem? Essas mulheres possuem nomes? Se a reposta para essas duas perguntas for sim, o filme já seria considerado feminista. Parece pouco, mas pode acreditar que não é. Poucas obras passam no teste. E, como fica claro, o teste não questiona sobre o gênero de quem fez o roteiro do filme ou o dirigiu, demonstrando que isso importa pouco para a inclusão de enredos que colocam mulheres como seres autônomos em relação às suas contrapartes masculinas nas histórias.

Já que o ambiente é de questionamentos, pergunto outra coisa: mulheres que escrevem livros que circulam em torno de um universo masculino não estão da mesma forma fazendo um bom trabalho para a inclusão de mulheres? (Com essas características, recomendo o romance Fim, de Fernanda Torres) Ainda que os personagens principais não sejam mulheres ou a temática não fale diretamente sobre dramas específicos do universo feminino (no final das contas, o que exatamente seria isso?), obras de mulheres devem ser valorizadas por significar que foi dada a chance a elas de ter voz. Condicionar sua incursão na literatura a uma visão pré-estabelecida do que é a escrita feminina é negar o fato de que elas merecem estar onde bem entenderem simplesmente porque merecem condições iguais. Parece ridículo dito assim, mas não é tão banal. J.K. Howling, autora da saga do personagem Harry Potter, foi aconselhada quando publicou seu primeiro livro a não usar seu primeiro nome, apenas a inicial. O motivo alegado pelos editores foi que meninos não compram livros escritos por autoras mulheres. Parte-se do pressuposto que mulheres só tratam de assuntos que interessam a outras mulheres, o que, dado o sucesso dos sete livros do bruxo inglês, não se sustenta. Porém, preconceitos são difíceis de desconstruir e a preocupação de que mulheres não sejam vistas como autoras de apenas um tipo de livros não é banal. 

Por fim, num esforço rápido de pesquisa na minha estante, procurei cinco livros escritos por mulheres e que falem sobre mulheres (e que não sejam acadêmicos). Destaco os seguintes:

Mulheres Alteradas, de Maitena: as tirinhas criadas pela cartunista argentina apresentam uma pluralidade de mulheres diante de dilemas do dia-a-dia. As diferentes respostas para questões majoritariamente femininas do mundo são engraçadas e muitas vezes catárticas. 

Bordados, de Marjane Satrapi: a autora ficou conhecida pela seqüência autobiográfica Persépolis, na qual conta sua vida como uma jovem iraniana durante e depois da Revolução Islâmica. Neste outro livro em quadrinhos, Marjane Satrapi relembra as conversas das mulheres de sua família logo após o almoço. A palavra bordados do título tem dois sentidos. O primeiro deles porque esse era o momento em que as mulheres aproveitavam a sesta dos homens para bordar. Porém, bordado também era o nome dado à cirurgia de reconstrução do hímen feita por mulheres que se casavam depois de já ter tido uma vida sexual, revelando o teor das conversas entre elas enquanto os homens dormiam. 

Mutações, de Liv Ullmann: o livro é um relato pessoal da atriz norueguesa, que conta sua percepção sobre ser mulher em diferentes momentos da sua vida. Ainda que trate exclusivamente da sua experiência, minha impressão é de que o livro vem encontrando eco nos sentimentos de muitas mulheres há gerações.

Americanah, de Chimamanda Adichie: trata-se de uma história de amor que fica em suspenso durante anos, quando uma moça nigeriana deixa seu namorado no seu país natal para recomeçar seus estudos nos Estados Unidos. Ainda que a narrativa acompanhe a vida dos dois, o ponto alto do livro são as reflexões da protagonista, Ifemelu, sobre sua vida como mulher, negra, africana e imigrante. Ao que parece, o livro tem muito de autobiográfico. Garanto que a fluidez da escrita faz com que o(a) leitor(a) não perceba as mais de 500 páginas.

Luzia, de Susana Fuentes: a passagem da infância para a vida adulta não é nada simples. Quando esse processo ainda está marcado pelo abuso sexual, o assunto é especialmente espinhoso. Mas a prosa poética da Susana é capaz de transformar tudo numa árvore frondosa, mesmo quando há machados rondando o caminho. 

E você? Tem lido algum livro escrito por uma mulher ou que fez você repensar de alguma forma as relações de gênero?

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